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Duas estórias de vida

 

1. Um negrume cobria o fim de tarde de Lisboa.

No jardim dos Mártires da Pátria, foi assassinado Gomes Freire de Andrade, personagem que L. Sttau Monteiro exaltou em “Felizmente há luar”. A única referência mítica centra-se, porém, não naquele General português, mas na estátua do médico taumaturgo Sousa Martins, cujas graças estão patentes nas flores e mensagens escritas em placas de mármore que muitos devotos lá colocam.

João (nome fictício) anda, de um lado para o outro, indiferente às estórias de vida de tantos pacientes suplicantes, talvez porque a sua maleita é crónica e ninguém dela se compadece. Desempregado, sem família e sem dinheiro, passa os dias a arrumar carros... «Quando não há movimento isto é um stress e ganha-se pouco... há dias em que nem faço 20 euros...» E a polícia? Não vem por aqui? «Pode deixar o carro à vontade. As máquinas estão avariadas.» Estão sempre avariadas?-pergunto, ingenuamente.

«Como é que a gente havia de ganhar algum?» Percebi a marosca e continuei: não tem família? «Não, tenho um irmão, mas há muito não o vejo.

Vivo num quarto particular... Agora estou à espera de um emprego num restaurante, a lavar pratos. Dá 800 euros, almoço e jantar. Estou à espera...Que é que quer? Aqui só dá para matar a fome, mas como não sei nem quero roubar, é melhor que nada... O pior é quando os carros ficam pr'àqui parados: não saem, nem entram...»

Felicidades! rematei a conversa, deixando o homem de meia idade, entregue à sua pouca sorte.

Em Lisboa e noutras cidades, vê-se, por todo o lado, cada vez mais gente indicando locais vazios para estacionar. É a crise e a falta de trabalho leva aqueles homens a sair de casa ainda de noite, para ocuparem as ruas mais movimentadas.

Mas as dificuldades não atingem toda gente.

2. Um dia destes, encontrei numa loja chinesa, uma senhora negra, angolana, natural da Gabela, onde paroquiou o meu amigo Dr. Valentim Borges de Freitas. «Aquilo está uma cidade. Se for lá, pergunta: é aqui a vila da Gabela? Sim é ali. Só construção, só prédios novos, gente de fora: da China, de Portugal, do Brasil, do Congo, de todo o lado.» E continuou com o mesmo entusiasmo: “ Luanda já não é longe. Passado o rio Kuanza é pertinho.”

Mas há muito dinheiro em Angola? «Sim, muito dinheiro. Até a Cela, que era uma terra pequena, cresceu muito.» (A Cela, na década de 60,  recebeu várias famílias jorgenses desalojadas por uma crise sísmica. Lá se instalaram com animais, num colonato, mas apesar das promessas, nunca da terra tiraram grandes proventos. Depois da descolonização rumaram à Califórnia e aí, sim, prosperaram.)

E o café? continuam a produzir café? «Sim, muito, mas sobretudo diamantes. Há muito dinheiro em Angola.»

As passagens para Portugal são caras? «Não, são baratas! Muitos vêm agora aqui aos saldos e aos chineses comprar mercadoria para venderem lá e ganham muito dinheiro.»

Sempre com semblante risonho a mulher, a rondar os 80 anos, respondia com agrado às minhas perguntas, como se fosse um cicerone.

Então e Portugal? Gosta de vir? «Sim, tenho cá família e amigos. O pior é o frio. Não me dou com o frio...Já venho a Portugal desde 1955. Comprámos aqui um apartamento para a família, quando vem. Fica num prédio da Avenida do Brasil, com duas bananeiras à entrada. Temos outro no Brasil, em Curitiba. Conhece? Tenho lá um neto a viver.»

E é fácil trocar dólares e euros em Angola? «Sim. Desta vez já comprei os euros lá. É mais fácil porque aqui não temos de ir ao banco. Agora com a crise em Portugal, há muita gente a voltar. Mas há-de ir a Angola.  O José Eduardo (Presidente da República) está a fazer uma coisa muito boa. Ele restitui as propriedades aos que comprovam ser donos e se comprometem em recuperá-las... é... sim senhor!...Angola está muito diferente...»

Durante a conversa, viajei por aquela ex-colónia: Luanda, Novo Redondo, Lobito, Benguela, Alto Hama, Nova Lisboa... locais aonde me levaram os destinos da vida. 

Outrora, Angola foi exílio de presidiários e de contestatários ao regime. Mais tarde, recebeu centenas de milhar de portugueses, gente laboriosa e empreendedora que o regime colonial usou para alimentar oligarquias económicas.

Duas estórias de vida de países que partilharam uma história de guerra e paz.

É caso para dizer:«As malhas que o império tece...»

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